Hamilton Dias de Souza, advogado e professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP, ofereceu sua análise jurídica detalhada sobre os efeitos da Reforma Tributária no setor de serviços funerários, ressaltando a importância desse debate para o futuro da categoria.

Em um artigo direcionado à Associação dos Cemitérios e Crematórios do Brasil (Acembra) e ao Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), Dias de Souza trouxe à tona a argumentação de que os serviços funerários são tão essenciais quanto os serviços de saúde, sublinhando que ambos atendem necessidades básicas da população em momentos cruciais. Por essa razão, ele defende que os serviços funerários devem ser incluídos na lista de itens com alíquota tributária reduzida.

A proposta visa equilibrar a carga tributária, evitando que o peso excessivo dos impostos dificulte o acesso a rituais e práticas fundamentais no momento da despedida de entes queridos, um direito que está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, conforme assegurado pela Constituição Federal.

Com essa postura, Hamilton Dias de Souza se junta a um grupo crescente de defensores que lutam para garantir que a Reforma Tributária contemple as peculiaridades dos serviços funerários, reconhecendo a importância social e humana desse setor.

Leia o artigo completo abaixo:

A constitucionalidade da inclusão dos serviços funerários no regime
diferenciado previsto para o setor de saúde
Hamilton Dias de Souza

Introdução

Cuida-se de examinar a viabilidade de incluir os “serviços funerários” na lista de itens beneficiados pelo regime diferenciado de redução de 60% das alíquotas de I/CBS, conforme previsto na Emenda 665-U ao PLP n. 68/2024, de autoria do Senador Wilder Morais.

 

I. A EC n. 132/2023 e a possibilidade de regimes diferenciados de tributação. Poder-dever do legislador

A Emenda Constitucional (EC) n. 132/2023 promoveu a reforma dos tributos incidentes sobre bens e serviços e estabeleceu diretrizes para o legislador infraconstitucional na criação do IBS e da CBS, que substituirão o ICMS, ISS, PIS e COFINS. Entre essas diretrizes, a tributação do consumo pode ser graduada por alíquotas distintas, com uma alíquota padrão para a maioria dos bens e serviços (arts. 156-A, inciso VI e 195, §16 da Constituição Federal), além da possibilidade de regimes diferenciados, nos quais as alíquotas podem ser reduzidas parcial ou integralmente (art. 9º da EC). Desse modo, passaram a ser previstos três blocos de alíquotas: padrão, intermediária e zero/isenção.

A aplicação de alíquotas reduzidas para bens e serviços necessários/essenciais é uma diretriz fundamental para garantir que a tributação sobre o consumo não onere as necessidades mais primárias da sociedade, o que prejudicaria principalmente os setores mais vulneráveis da população. O texto constitucional fixa a competência da União para definir as regras gerais do IBS e delega a uma Lei Complementar a competência para estabelecer as alíquotas diferenciadas, sobretudo para bens e serviços necessários e essenciais, como alimentos, medicamentos e educação.

A gradação das alíquotas de I/CBS na EC n. 132/2023 ancora-se na relevância ou essencialidade dos itens tributados à vida em sociedade. A EC menciona exemplos de serviços suscetíveis à alíquota intermediária, como saúde, educação e alimentos para consumo humano, considerados relevantes ou mesmo essenciais para a vida humana e o Estado. Assim, quase que similarmente à classificação das benfeitorias no âmbito do direito civil*, a alíquota padrão aplica-se à generalidade dos bens e serviços, a intermediária, aos bens e serviços relevantes ou necessários e a alíquota zero/isenção, aos imprescindíveis/essenciais.

Esse poder-dever legislativo, embora tenha ampliado a flexibilidade na definição de alíquotas, não é ilimitado. A graduação de alíquotas deve ser realizada de acordo com princípios constitucionais, em especial os princípios da proporcionalidade e equidade, sob pena de violar a Constituição Federal.

 

II. Limites ao poder-dever legislativo: o princípio da proporcionalidade enquanto manifestação de equidade e justiça tributária.

O princípio da proporcionalidade exige que as medidas adotadas pelo Estado sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito**. Na tributação, isso significa que as normas devem respeitar a capacidade contributiva dos contribuintes e o equilíbrio entre o fim buscado e o meio empregado. Nesse sentido, José Afonso da Silva assenta que “o princípio da proporcionalidade, ou da proibição de excesso, exige que as limitações a direitos fundamentais – como as impostas pela tributação – sejam adequadas, necessárias e proporcionais”***.

A EC n. 132/2023 confere ao legislador o poder de graduar alíquotas de forma diferenciada. No entanto, essa prerrogativa não pode ser exercida de maneira arbitrária, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade. Caso o legislador estabeleça alíquotas reduzidas ou isenção para bens e serviços gerais, de menor relevância econômica ou social, e mantenha a tributação normal sobre bens e serviços essenciais ou imprescindíveis, haverá ofensa à proporcionalidade, que exige equilíbrio entre a intervenção estatal e a carga imposta ao contribuinte. Do mesmo modo, se o legislador enquadrar determinados bens e serviços na alíquota reduzida, tendo em vista a sua relevância ou essencialidade, haverá desproporcionalidade se ele mantiver na alíquota geral bens e serviços enquadrados na mesma categoria geral e notoriamente similares em termos de relevância/essencialidade. Em outros termos, o critério de discrimenadotado (vg.: relevância social/essencialidade) deve ser o mesmo para todos os bens e serviços enquadrados em uma mesma categoria, o que implica considerar aqueles que ostentem características semelhantes, sob pena de ofensa, também, à equidade.

Daí porque a EC n. 132/2023 excluiu do campo possível de incidência do Imposto Seletivo os bens e serviços sujeitos às alíquotas reduzidas de I/CBS (art. 9º, § 9º), a confirmar que o critério de elegibilidade de determinados itens aos regimes diferenciados é sua necessidade/essencialidade, incompatível com a prejudicialidade de bens/serviços que informa o Imposto Seletivo.

O Supremo Tribunal Federal tem reiterado, em diversas decisões****, que o princípio da proporcionalidade atua como um freio à discricionariedade do legislador tributário, sendo fundamental para evitar o confisco indireto ou tributação que viole a equidade. O STF também orienta que o legislador deva ser coerente nas suas escolhas tributárias,
respeitando os princípios de igualdade e razoabilidade, sob pena de um processo de “inconstitucionalização” de leis incoerentes ou discriminatórias (Tema n. 337 de Repercussão Geral).

Assim, embora a adoção de regimes diferenciados seja opcional, nos termos do disposto no caput do art. 9º da EC 132/2023, ao serem instituídos, os critérios de relevância/necessidade e essencialidade devem guiar a seleção dos bens e serviços beneficiados. Afinal, a própria Constituição, com redação ajustada após a aprovação da EC 132, exige respeito aos princípios de justiça tributária e atenuação dos efeitos regressivos da tributação, conforme o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 145 da CF.

 

III. As características do serviço funerário impõem que lhe seja aplicado o regime de tributação reduzida relativa a serviços de saúde

Os serviços funerários usualmente iniciam nos hospitais e incluem a coleta, preparação, transporte e sepultamento de corpos humanos, conservação de restos mortais, apoio psicológico à família, dentre outros.

Trata-se de um plexo de atividades que se relacionam ao setor da saúde, tanto do ponto de vista de origem do serviço quanto do ponto de vista da finalidade do serviço, que visa, dentre outros, manter padrões sanitários estabelecidos pelo Estado em prol da coletividade, controlar doenças e promover gestão ambiental.

De fato, os serviços funerários se conectam aos serviços de saúde por necessidade, pelo menos, de: a) controle sanitário na manipulação de corpos, especialmente em casos de doenças contagiosas ou condições de risco biológico, função a cargo tanto de hospitais, quanto de prestadores de serviços funerários; b) certificação dos procedimentos pós-óbito, já que os profissionais de saúde seguem protocolos específicos para certificar a morte e comunicar a família, o que se interliga e facilita a transição para os serviços funerários; c) apoio às famílias antes e após o falecimento para garantir que o processo de luto seja o mais respeitoso e organizado possível; e d) respeito à dignidade humana e aos direitos dos pacientes e familiares.

O tema é objeto, por exemplo, da Resolução RDC nº 33/2011, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que estabelece diretrizes específicas para regulamentar o transporte de urnas funerárias contendo restos mortais humanos, abrangendo também os aspectos relacionados ao seu armazenamento ou guarda temporária até o destino final. Do mesmo modo, no contexto do combate à pandemia da Covid-19, o artigo 3-J,

§ 1º, inciso XX, da Lei 13.979/2020, classificou como profissionais essenciais ao controle de doenças e à preservação da ordem pública os “coveiros, atendentes funerários, motoristas funerários, auxiliares funerários e demais trabalhadores de serviços funerários e de autópsias”, o que reforça conexão direta entre os serviços cemiteriais, crematórios e funerários e os relacionados à preservação da saúde pública.

Os serviços funerários asseguram, ainda, dignidade ao falecido no período pós-morte, garantindo o direito à memória e o respeito, além de oferecer conforto aos familiares. Nesse contexto, é relevante mencionar que o custo elevado desses serviços impacta de forma mais intensa as famílias de baixa renda (regressividade), especialmente em momentos de luto inesperado. Por esse motivo, a tributação adequada desses serviços preserva, também sob essa perspectiva, a dignidade de pessoa humana.

Há, portanto, uma ínsita conexão entre os serviços funerários e os serviços de saúde, já que aqueles permitem a extensão dos cuidados prestados pela saúde, garantindo que os processos que envolvem o fim da vida e a transição para os ritos fúnebres sejam realizados de maneira adequada e ética.

 

Em função da importância do serviço funerário para o controle da saúde pública, a doutrina***** assenta que o serviço funerário constitui serviço público econômico, caracterizado pelo fato de poder ser prestado pela iniciativa privada, porém com a regulação e supervisão do Estado, que garante seja ele prestado de maneira adequada e dentro de normas de saúde pública, urbanismo e bem-estar coletivo.

Nesse sentido, o STF já assentou que os serviços funerários são considerados serviços públicos de competência legislativa municipal, conforme estabelecido no artigo 30, inciso V, da Constituição Federal, “dado que dizem respeito com necessidades imediatas do Município”. (ADI 1221, Rel. Min. Carlos Velloso, DJe 31/10/2003). Tanto possuem caráter de serviço público que estão submetidos ao “poder de polícia da Administração Pública, com base na supremacia do interesse público sobre o privado” (ARE 862.377 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 03/12/2018).

Assim, embora o serviço funerário não precise ser titularizado diretamente pelo Estado (inclusive, eventualmente, com isenção de alíquotas), ele é inequivocamente relevante, a ponto de somente poder ser prestado por delegação à iniciativa privada e estar sujeito ao poder de polícia da Administração, o que justifica a sua inclusão no regime de alíquota diferenciada prevista no artigo 9º, § 1º, II da EC 132/2023, dada sua estreita vinculação com a saúde pública.

De fato, os serviços funerários não apenas são relevantes e indispensáveis em decorrência de obrigação legal e social, a afastar uma capacidade contributiva voluntária, mas estão conectados ao setor de saúde, que, de acordo com a própria Constituição, deve ter regramento tributário específico por parte do legislador complementar, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade. Assim, se o legislador complementar regrar com alíquotas diferenciadas as prestações relacionadas ao setor de saúde, não poderá deixar de assim fazê-lo em relação aos serviços funerários, sob pena de ofender o princípio da proporcionalidade e a equidade na tributação.

Em suma, não se justifica a sujeição de serviços funerários à alíquota padrão de I/CBS, dado que (a) trata-se de um plexo de atividades de origem e finalidade afetas à saúde pública, que a Constituição exige seja prestigiada e desonerada, (b) seu consumo é imprescindível, (c) sua natureza é de serviço público econômico, (d) sua prestação é essencial para a garantia da dignidade da pessoa humana e (e) sua tributação gera indesejável efeito regressivo. Estas são, aliás, características comuns entre serviços funerários e serviços de saúde em geral, a justificar que ambos sejam submetidos ao mesmo tratamento tributário, com aplicação de alíquotas reduzidas de I/CBS.

              

                     Conclusão
Diante do exposto, justifica-se a inclusão dos “serviços funerários” na lista de itens beneficiados pela redução das alíquotas de I/CBS, dada sua conexão direta com os serviços de saúde. Essa inclusão atende aos critérios estabelecidos pela EC n.132/2023, alinhando-se aos princípios constitucionais de justiça tributária, atenuação dos efeitos regressivos, dignidade da pessoa humana e valorização da saúde pública, evitando incoerências legislativas, de acordo com as orientações do STF.

 

Hamilton Dias de Souza

 

 

 

*No Direito Civil, a classificação das despesas como úteis, necessárias ou voluptuárias é abordada no contexto das benfeitorias realizadas em bens, especialmente em imóveis. Referências: Gomes, Orlando. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004. Venosa, Silvio. Direito Civil: Direito das Coisas. São Paulo: Atlas, 2023.

**De acordo com Robert Alexy, “a proporcionalidade implica que uma medida estatal deve ser adequada para atingir o fim pretendido, necessária e proporcional em sentido estrito, no sentido de que o sacrifício imposto não seja desproporcional ao benefício alcançado (Teoria dos Direitos Fundamentais, 2015, p.134).

***SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2013, p. 264).

****No julgamento da ADI 5510, o STF concluiu que “as multas tributárias não podem ser desproporcionais ou confiscatórias, sob pena de violarem o princípio da proporcionalidade, que impõe um limite ao poder de tributar” (DJ Eletrônico, 12/11/2018).

Ao discutir a tributação do setor de energia, no RE 718.874, o STF decidiu que “a tributação não pode exceder os limites da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de configurar-se como uma forma indireta de confisco, o que é vedado pela Constituição Federal” (DJ Eletrônico, 11/05/2020).

Na ADI 2006-MC, o STF reafirmou que o “princípio da proporcionalidade impõe a justa medida entre os meios utilizados e os fins pretendidos pelo legislador, de modo que sanções fiscais não podem ultrapassar o limite do necessário para o cumprimento da função estatal” (DJ Eletrônico, 16/03/2001).

*****Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 37ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021. Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 45ª ed. São Paulo: Malheiros, 2020